«Voltámos para casa anteontem [sexta-feira], nesse dia sagrado. Não há no mundo
maior delícia do que a normalidade. Cada palavra da Maria João soa-me a música
amada. Nos livros avisam que a remoção de tumores cancerosos do cérebro pode
provocar alterações de personalidade.
Eu tinha medo que ela deixasse de
ser a Maria João que eu amo. Mais medo ainda tinha que ela deixasse de me amar.
A primeira vez que a vi, poucas horas depois da cirurgia, no remanso dos
cuidados intensivos, perguntei-lhe se ela me reconhecia. E ela recuou a cabeça
ligada, fez uns olhos de surpresa repugnante e perguntou, com convencimento:
"Mas quem é o senhor?"
Nem sequer foi o sentido de humor a primeira coisa
a regressar. Nunca se foi embora. A Maria João não recuperou: manteve-se. O
milagre não lhe era exterior. O milagre é ela. Ela e todas as pessoas de quem
ela gosta, que gostam dela.
Eu bem que tento guardá-la como um segredo.
Mas só estou bem, quando tenho a sorte de ouvi-la e a vê-la e a vivê-la.
Escrever sobre ela é a coisa mais fácil que faço: é uma preguiça e um prazer,
como se conseguisse enganar quem me lê. É virar as costas ao mundo, que vai tão
mal. Mas que é um mundo que ainda contém a Maria João, a pessoa que eu amo, que
ainda aceita o amor que lhe tenho. Que cresce, ao contrário do cabrão do cancro,
previsivelmente, certamente, sem fazer mal; fazendo bem.
Meu grande amor:
seja de que maneira for, continua. Mesmo deixando de gostar de mim. Mas
continua. Vive!» (Miguel Esteves Cardoso)
ate' choro...
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